Quando penso no quanto somos indignos, na
maior parte do tempo, de nossa capacidade de raciocínio e autogestão, a vida
cotidiana reforça essa convicção. Passei boa parte de minha vida adulta tentando
estabelecer boas relações de amizade com pessoas de diferentes opiniões sobre qualquer
coisa, vindas de diferentes círculos socioeconômicos e com diferentes níveis de
bagagem cultural, apenas para chegar aos trinta e nove anos sem poder
considerar a maioria destas pessoas meus amigos ou amigas.
É como se minha própria ambição de ser
tolerante me punisse com a indiferença e intolerância daqueles que nunca se esforçaram
pra reconhecer o quanto eu prezei sua companhia, numa época em que eu precisava
muito estabelecer um contato com diferentes pessoas e conhecer características
a meu próprio respeito que me fizessem sentir um cidadão comum, e parte desta
imensa multidão. Ledo engano.
Hoje, após um período de intenso afastamento
de muita gente que nunca se importou comigo, noto que é fácil pra eles me
descartarem, pois é assim que somos: descartáveis. E é exatamente por isso que eu
mesmo iniciei o processo de descarte destas pessoas, em primeiro lugar.
Fui parte de um batalhão de estranhos, e hoje percebo que não gosto da idéia de sequer figurar nas memórias de gente que nunca gostou de mim, em primeiro lugar. |
Um sorriso de escárnio é como uma facada nas costas. (Arte de Basil Wolverton) |
Senso de humor é privilégio de poucos. É preciso
ter inteligência, vivência e muita cultura pra poder desenvolver uma tolerância
a tudo e a todos no sentido de podermos usufruir justamente desta capacidade
intelectual de apontar o dedo pra todos ao redor e fazer graça de suas
condições, pois estas mesmas condições são as nossas: também temos cor de pele,
sexo, religião, estatura, aparência física, sotaque, condição social, profissões,
e tudo o mais que faz com que um indivíduo seja passível de se tornar alvo de
escárnio. Passei quase o mesmo tempo em que estava desenvolvendo minhas
capacidades de interação social, me defendendo constantemente de ataques à minha
pessoa por parte daqueles que se diziam meus amigos. Eu já fui considerado muitas coisas: de ponto de
referência pop cultural (“enciclopédia
ambulante” de “cultura inútil”) a amigo de ocasião de pessoas que nada tinham a
oferecer em troca de minha companhia e boa vontade, a não ser pagar pela
cerveja e me dar carona de volta pra casa, no final da noite. Assim como já fui
padrinho de casamento de gente que na verdade sempre me tratou com
condescendência, apoiados na ilusão de que eu sempre abaixaria a cabeça diante
de suas ofensas, e piadinhas mal colocadas, em conversas informais onde eu
dialogava enquanto gente muito baixa me esperava relaxar e fazia graça com
qualquer característica minha, somente pra parecerem mais interessantes, mais
inteligentes, ou simplesmente pra me fazer calar a boca. Talvez minha voz e
fluência verbal incomode muito a essas pessoas, talvez elas sempre me odiaram,
a verdade é que ainda não sei o motivo real dessa hostilidade que fermentava em
suas cabecinhas de classe média burra e mal-amada pelos pais. Ainda me lembro
com amargura de diversas ocasiões quando supostos amigos simplesmente atalhavam
as conversas que estava tendo na ocasião apenas pra terem o prazer perverso e
infantil de me interromperem e fazer graça com termos que uso normalmente,
afinal de contas não vou desperdiçar meu bom português diante dos iletrados
apenas para parecer mais humilde, isso seria idiotice.
O politicamente correto parece incomodar
muito essas pessoas, e até entendo que possa haver uma espécie de busca
incessante por reparação por parte de alguns grupos mal representados que se
consideram vítimas eternas, mas chego à conclusão de que ofender por ofender é
importante para os de pouca inteligência, diante da facilidade de um convívio
social onde todos são considerados iguais, mas na mente destes mesmos de pouca
inteligência, a arte de ofender pra parecer engraçado e espirituoso é o
objetivo final, não importando as consequências muito menos a possibilidade de
erodir suas relações sociais à ponto de um dia muitas dessas pessoas ofendidas
simplesmente se afastarem sem aviso, deixando-os sem respostas, e sem alvos.
Ontem, subindo minha rua em direção à padaria,
topei com um ex-amigo na calçada. Surpreendi-me virando a cara com a mesma
facilidade com que ele fez o mesmo pra mim. Assim como me surpreendo remoendo
um sentimento de ansiedade por nunca ter falado o que realmente pensava daquela
relação de suposta amizade onde eu acabei me tornando o cicerone de alguém
incapaz de criar e manter sua própria vida social. Éramos amigos, pensava eu,
mas na verdade eu era um estepe, alguém com quem gastar tempo enquanto não
arranjava algo melhor pra fazer. Pessoa criada pra ser um vencedor a qualquer
custo, não conseguia interagir de forma alguma à não ser a competição; tudo pra
ele é uma competição, é apenas assim que ele consegue se sentir no topo, quando
está competindo. Se eu falasse de uma determinada ferramenta que tenho,
respondia prontamente “que meu pai tem duas”, ou “a do meu pai é melhor”; se eu
falasse com uma garota em um bar ou festa, ele prontamente aparecia e ficava
ouvindo a conversa, como se eu fosse uma aberração de circo que soubesse falar,
e assim que achava uma brecha, invadia a conversa e me fazia parecer um
palhaço, ou idiota, algo que o fizesse sentir muito superior. E o pior era
depois ouvir que se preocupava comigo e achava que eu estava “perdendo meu
tempo”, que tinha que “tomar jeito nessa vida”. Como alguém assim pode ser
considerado um amigo? Pior: como EU pude andar com alguém assim por tanto
tempo?
Quando seu casamento acabou, eu cheguei a ser
vagamente responsabilizado por “não estar lá” quando eles mais precisavam de “orientação”.
Quer dizer, eu falhei em minhas supostas atribuições, mas ele nunca reconheceu
que tratava sua esposa (alguém muito bacana, diga-se de passagem) como se ela
fosse um animal de montaria. Sinceramente, é de se estranhar porque tantas
mulheres jovens traem seus maridos e namorados, quando eles agem como se fossem
feitores de escravos? Acho que não. Se a mentalidade de homens como esse cara
percebe as mulheres com quem namoram e casam apenas como sistemas de apoio
vivos para vaginas, acho justo que essas mesmas mulheres dêem o troco,
procurando outros homens que as tratem melhor, ou até pior, somente pra provar
um ponto: elas têm escolha, seus cornos de merda! Você não é a maior e melhor
pica do mundo!
Gosto de pensar que minha ausência causou
certo desconforto na vida de muitas pessoas que conheço. É ego trip de minha
parte, sei disso, mas é como encaro essas idas e vindas do processo do convívio
social. Assim como gosto de cultivar e manter as amizades verdadeiras e sinceras,
baseadas na confiança e sinceridade mútuas, no carinho e respeito pela
individualidade das pessoas, que é a certeza de que não importa quanto tempo eu
permaneça longe de meus amigos, quando nos encontramos, é como se estivéssemos
o tempo todo juntos, e nunca houvesse distância no tempo ou espaço entre nós. Desses eu nunca sinto falta pois nunca estamos afastados de verdade.